sábado, 27 de agosto de 2011

A árvore da vida - Terrence Malick

Lista dos motivos pelos quais eu amei esse filme:
- Sei que muita gente dormiu, não gostou, ficou irritado (etc.),  mas, para mim o filme "A ávore da vida" é um dos filmes mais lindos que já vi. E eu costumo gostar de filmes que ninguém gostou.
- O diretor Terrence Malick tem setenta e três anos. Um filme assim, com tamanha profundidade, só poderia ser sido feito por alguém com a maturidade e a liberdade conquistada com a velhice. Eu ainda não falei sobre isso aqui no blog, mas sou fascinada pela velhice.
-  Ao contrário do que algumas (muitas) pessoas sugerem, eu não eliminaria uma cena sequer. Adorei a sequência National Geographic. Na minha opinião, estas cenas contribuem para ampliar os sentidos das cenas mais realistas. E são lindas.
- Os atores estão ótimos, principalmente as crianças. As cenas que mostram a relação entre irmãoes estão entre as mais emocionantes do filme.
- Assim como "Melancholia" (que, aliás, tem muitas coisas em comum com este filme), "A árvore da vida" toca nas minhas memórias infantis e feridas (in)curáveis. Como nos mostra o filme, é possível acertas as contas com o passado, e estar em paz com os irmãos, mães, pais, vizinhos e amigos que vivem como fantasmas dentro de nós. Afinal, como diz a personagem da mãe, só com amor é possível ser feliz.




"A Árvore da Vida" discute religião com Brad Pitt e Sean Penn

Marco Tomazzoni, iG São Paulo | 11/08/2011

Ganhador da Palma de Ouro em Cannes, filme dirigido por Terrence Malick faz reflexão filosófica e teológica sobre a existência

Terrence Malick vive entre o céu e o inferno. Famoso por seu preciosismo e pelo zelo com que guarda sua vida particular, o cineasta e roteirista norte-americano, hoje com 67 anos, sempre retratou as duas faces em seus filmes, de "Terra de Ninguém" (73) a "Além da Linha Vermelha" (98), quando encerrou uma ausência de 20 anos do cinema indo parar entre os principais indicados ao Oscar. Nas histórias, a paz e a beleza invarialmente eram ameaçadas ou davam lugar ao conflito e à violência.
O pilar da narrativa é Jack (Sean Penn, em participação breve), um arquiteto do mundo atual que embarca numa viagem rumo à sua infância no Texas da década de 1950. A alegria e a liberdade das brincadeiras ao lado dos irmãos menores, amparadas pelo amor incondicional da mãe (Jessica Chastain), cristã, são contrastadas pela rigidez do pai (Brad Pitt), cético, que não admite desrespeito e controla a família com mão de ferro. Também perdida no passado está a morte de um irmão no exército, aos 19 anos, comunicada por um telegrama.
A trama serve de pretexto para uma reflexão filosófica e teológica muito maior, que não respeita linearidade – essas poucas linhas anteriores estão embaralhadas ao longo das quase duas horas e meia de projeção e concentradas no miolo, quando a história mais se aproxima do tradicional. Malick se libertou do roteiro em busca de um cinema livre, liberto de amarras e das convenções de Hollywood.
Preenchem o vai e vem reflexões e indagamentos dos personagens, sempre em off. São diálogos com Deus, de dúvidas infantis ("onde você mora?"), passando pela moral ("por que eu deveria ser bom, se você não é?") até a pura revolta ("Ele envia moscas às feridas que deveria curar"). A discussão é emoldurada por insistentes planos em contraluz, como que para atestar que aquela luz brilhando ao fundo comprova a presença divina.
A busca por Deus também está por trás da overdose de imagens belíssimas. A perfeição da natureza, na visão de Malick, assegura a existência de um poder maior. Ele vive numa revoada de pássaros no céu, num beijo de boa noite, num banho de mangueira no jardim, numa borboleta pousando na mão. O deslumbramento dá lugar à desconfiança nos clichês de uma cachoeira, uma vela, uma árvore mexendo com o vento, tal qual a dança da sacola plástica em "Beleza Americana". A sensação de exagero e o cansaço são inevitáveis.
Isso não impede que "Árvore da Vida" seja sério concorrente a filme mais bonito da história. A câmera do diretor de fotografia mexicano Emmanuel Lubezki (que já havia trabalhado com o cineasta em "O Novo Mundo", de 2005) desliza por salas amplas de luz perfeita, na grama, na floresta ou debaixo d'água. O ápice é a mãe flutuando no ar no lusco-fusco, num raro momento de realismo fantástico, e a casa inundada que serve de metáfora para a rotina dentro do útero.
Digna de um programa excelente da National Geographic, a sequência da evolução da vida ficou nas mãos do veterano supervisor de efeitos especiais Douglas Trumbull, que estreou no ramo com "2001 - Uma Odisséia no Espaço" (68) e havia se despedido com nada menos que "Blade Runner" (82). Ele deu um tempo na aposentadoria para ajudar Malick a mostrar o Big Bang, o movimento no espaço sideral, águas-vivas, uma divisão celular vista por dentro, vulcões e o primeiro sinal de compaixão entre dinossauros, para depois seguir os  passos de um bebê.
Tudo parte de uma parábola. "A Árvore da Vida" é claramente uma profissão de fé de Terrence Malick, que adota um tom solene, regado a ópera e citações bíblicas, para questionar as opções que o homem tem diante de si: a graça ou a perdição. O discurso, porém, se alterna entre profundidade e ingenuidade, caminhando com perigo pelo terreno superficial da auto-ajuda.
Os senões são compensados por um retrato fidelíssimo da infância e de uma família verdadeira. Jessica Chastain e Brad Pitt são poderosos e os atores mirins, um documento do conflito entre inocência, prazer e do despertar do certo e errado nas crianças. Aí Malick encontra a verdade absoluta e emociona sem restrições.
A Palma de Ouro, questionada por muita gente, se justifica pela influência que o diretor adquiriu para as novas gerações – virou um farol de cinema autoral – e pela coragem em fazer uma obra sincera, que abrirá as comportas, dizem, para outras ainda menos convencionais. Uma coisa é certa: ninguém fica imune a "Árvore da Vida".
http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/a+arvore+da+vida+discute+religiao+com+brad+pitt+e+sean+penn/n1597129004978.html

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Melancholia - Lars von Trier

Hoje fui ver Melancholia de Lars von Trier. E esta é minha lista com os motivos pelos quais este filme me tocou profundamente:
- O filme me provoca sensações e memórias de algo que não vivi, mas é tão vivo em mim.
Sonho com o fim do mundo desde criança. A última vez que sonhei com o fim do mundo foi há uns dois meses. No meu sonho eu estava andando na rua quando cinzas (como as cinzas do vulcão do Chile) começaram a cair do céu.
Meteoros cruzavam o céu e caíam na terra.
Meu filho não estava comigo e eu queria muito falar com ele para saber se ele estava bem, mas não tinha mais energia elétrica e os meios de comunicação já não funcionavam. Fiquei desesperada. Encontrei meu pai, e estávamos num ônibus tentando fugir, mas descobrimos que um maremoto estava se aproximando. Respirei fundo e fiquei tranquila. Me senti em paz, com a sensação de que tudo estava certo, que eu já tinha cumprido minha missão, que tinha dado todo amor que podia para o meu filho. Mas acordei do sonho com a respiração ofegante. Fiquei algum tempo acordada de madrugada e passei pelo menos uma semana com as sensações do "fim de mundo".
Essas sensações retornaram quando vi "Melancholia".
- O filme mantém uma tensão constante através da proximidade da câmera, da música,  das cenas lentas e das imagens carregadas de simbolismo.
- O menino lembra meu filho e também meu sobrinho.
A relação entre as irmãs Justine e Claire lembra a minha relação com minha irmã. Uma relação cheia de desafios, de cuidado, de amor incondicional. Muitas vezes já nos sentimos assim: sozinhas, e com a sensação que o mundo estava acabando.
Fui tocada profundamente.
- Foi difícil parar de chorar para sair do cinema.



Crítica: Em Melancolia, Lars von Trier discute rituais e medos na iminência do fim do mundo

04/08/2011 13h07 Thyago Gadelha
Difícil dizer se Lars von Trier realmente levaria a Palma de Ouro em Cannes este ano. Mais difícil ainda não culpar a polêmica de suas declarações (mal interpretadas pela imprensa, como de costume) sobre Nazismo. O fato é que Melancolia é um dos melhores filmes do cineasta e faz jus a sua descrição: um belo filme sobre o fim do mundo. Talvez, sem o alarde do título "persona non grata", seu filme tivesse maior êxito (embora a imprensa estrangeira tenha feito mais elogios do que críticas). A dica é esquecer a polêmica e mergulhar na fábula.

A abertura é de tirar o fôlego. Por 10 minutos - o tempo de duração do prólogo da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner, que serve de trilha sonora - o espectador é tomado por várias cenas em câmera lenta, como se fossem pinturas em movimento. Justine (Kirsten Dunst) encara a câmera com um profundo olhar de tristeza enquanto pássaros mortos caem a sua volta. Claire (Charlotte Gainsbourg) carrega o filho Leo (Cameron Spurr) com dificuldade por um campo de golfe. Kirsten, vestida de noiva, aparece amarrada a fios de lã e depois sendo levada pela correnteza (referência clara à pintura Ophelia, de John Everett Millais). Um cavalo cai em silêncio. É o anúncio do fim do mundo.

Quando Melancolia foi anunciado, Lars declarou: "Nada de finais felizes". Estava sendo irônico, como de costume. À primeira vista, a extinção do mundo é algo completamente trágico e apavorante. Mas não para sua protagonista, Justine, vivida por Dunst em seu melhor papel. A parte 1, focada na melancólica personagem, mostra sua relação com os rituais de passagem de todo ser humano e a vontade de pertencer a um mundo "politicamente correto". Casar? Por que? Diante de toda a suntuosidade do castelo onde acontece a recepção, ela se vê perdida entre sorrisos e discursos familiares que não fazem o menor sentido. É obrigada a ser feliz. Está suscetível, frágil, com medo de dar um passo importante.

Dunst roubou a cena com suas tristes expressões em As Virgens Suicidas, há exatos 10 anos, mas caiu no óbvio hollywoodiano em atrocidades como Wimbledon - O Jogo do Amor e Um Louco Apaixonado, além, é claro, da trilogia Homem-Aranha. Em Melancolia, mostrou sua versatilidade e fez valer o prêmio de Melhor Atriz em Cannes. É dela o papel que seria de Penélope Cruz, a quem von Trier agradece nos créditos do filme. A ideia para o roteiro partiu de uma conversa com a atriz espanhola sobre a peça Les Bonnes, do dramaturgo francês Jean Genet, na qual duas empregadas matam a patroa. "Mas eu não faço nada que não tenha saído de mim", disse von Trier. "Então eu tentei escrever algo para ela. O filme é na verdade baseado nas duas empregadas que eu transformei nas duas irmãs do filme". A atriz desistiu do projeto para fazer... Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (!).
Talvez, o que tenha feito Kirsten ganhar a Palma de Ouro e não Charlotte Gainsbourg, que também emociona com sua fragilidade exposta na segunda parte, sejam as nuances que deu à personagem desde o casamento até o pré-destinado fim do mundo. É dela o alterego de Von Trier. "Acho que Justine é muito parecida comigo. Ela é bastante baseada em mim e em minhas experiências com profecias de fim dos tempos e depressão". Justy, como é carinhosamente chamada pela irmã, é melancólia e não consegue encontrar seu lugar no mundo, logo, o casamento se torna um desastre. Na segunda parte, focada em Claire (Gainsbourg), ela está mergulhada na depressão. Nada faz sentido. Saber que o mundo vai chegar ao fim a deixa confortável. Não há nada a perder. A maneira como ela sai da fragilidade inicial para uma madura conformidade à iminência do apocalipse é que é o segredo do troféu.

Para fazer o contraponto, Lars concentrou a segunda parte em Claire, interpretada com maestria por Charlotte Gainsbourg (vencedora da Palma de Ouro de Melhor Atriz por outro filme do cineasta, Anticristo), que poderia dividir o prêmio com Dunst. Sua mudança de comportamento do casamento para a ameaça de colisão do planeta Melancholia é nítida. Prática e controladora, Claire vive todos os rituais e tem uma vida estável, um marido, um filho, os bens materiais, o que significa que tem mais a perder com o fim do mundo. É quando ela se dá conta da sua mortalidade. "Mas onde Leo vai crescer?", pergunta ela à irmã. Sua personagem, então, é reduzida à ansiedade, nervosismo e insegurança. Deposita toda sua fé no marido John, um milionário e astrônomo amador vivido por Kiefer Sutherland. Seus surtos de desespero são muito convincentes. Enquanto Justine é um espelho do cineasta, Claire é o retrato da reação da maioria das pessoas. Seu último pedido, que inclui uma brega taça de vinho, uma canção e alguns doces no pátio, é repreendido pela irmã.

Os outros personagens são meros coadjuvantes, mas estão todos bem - com destaque para os pais, o desligado Dexter (John Hurt) e a amarga Gaby (Charlotte Rampling), que roubam a cena no climão do casamento. Kiefer Sutherland surpreende como o marido racional, que encontra equilíbrio, fé e conforto na ciência (outros temas que incitam discussões no filme). Ele é o típico personagem masculino do cineasta. Seu destino, apesar de previsível e covarde, consegue emocionar (e assustar) o espectador. 

É a partir da perspectiva dele, das duas irmãs e Leo, que acompanhamos o suspense do fim do mundo. Não há notícias, não há o pânico coletivo, tão abusado em filmes hollywoodianos. Só um site com informações da rota de colisão acessado por Claire e Leo. O apocalipse de Lars é diferente, está na mente de seus personagens e na forma como reagem a ele. Enquanto em Anticristo seus atores são levados a extremos de nudez e violência, aqui ele segura toda a polêmica e contrapõe a moral das irmãs. É o psicológico em jogo. O destino de Justine é a catástrofe, mas é exatamente onde ela encontra o verdadeiro sentido. Pela primeira vez, von Trier entrega ao seu alterego feminino uma resposta positiva da tragédia. Uma visão romântica (no verdadeiro sentido da palavra, com referência ao Romantismo Alemão, influência declarada de Lars) da sua mortalidade. O final, arrebatador, vai ficar na memória de muita gente por dias, meses.

http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/diversao/2011/08/04/281288-critica-em-melancolia-lars-von-trier-discute-rituais-e-medos-na-iminencia-do-fim-do-mundo

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Filmes

Esta é uma lista de alguns filmes que gosto muito por motivos muito diversos:
- Nostalgia, Andrei Tarkovski
- O espelho, Andrei Tarkovski
- In the mood for love, Wong Kar Wai
- Herói, Zhang Yimou
- Cidadão Kane, Orson Welles
- Morangos Silvestres, Ingmar Bergman
- Pillow Book, Peter Greenaway
- Paris, Texas, Win Wenders
- Laranja mecânica, Stanley Kubric
- Otto Mezzo, Federico Fellini
- Todo sobre mi madre, Pedro Almodóvar
- Faraway, so close!, Win Wenders
- 2001, a space odyssey, Stanley Kubric
- Janela da alma, João Jardim e Walter Carvalho
- El algél exteminador, Luis Buñuel
- Pulp Fiction, Quentin Tarantino
- La dolce vitta, Federico Fellini
- O baile, Ettore Scola
- Delicatessen, Jean-Pierre Jeunet
- O sacrifício, Andrei Tarkovski
- O profissional, Luc Besson
- Blade Runner, Ridley Scott
- Mar adentro, Alejandro Amenábar
- Lost in translation, Sofia Coppola
- Os amantes do círculo polar, Julio Medem
- Fight club, David Fincher
- O poderoso chefão, Francis Ford Coppola
- A viagem de Chihiro, Hayao Miyazaki
- Matrix, irmãos Wachowski
- Shutter Island, Martin Scorcese
- Inception, Christopher Nolan
- O fabuloso destino de Amélie Poulain, Jean-Pierre Jeunet
- Black Swan, Darren Aronofsky
- Millons, Dany Boyle
- Os amantes de Pont Neuf, Leo Carax

Nostalgia

Nostalgia é um filme do cineasta russo Andrei Tarkovski de 1983.
É um dos filmes mais bonitos que já vi. Me toca de uma forma inexplicável, em lugares perdidos, reprimidos, esquecidos na memória dos fatos e sentimentos.


Nostalgia
Por Felipe Bragança  em Contracampo Revista de Cinema http://www.contracampo.com.br/61/nostalgia.htm
Nostalgia como o desejo do retorno – de um vazio incondicional, de uma essência que estaria ecoada enquanto ruptura com o presente. Religião, religar-se: um certo sentimento de abismo que parece tender sempre a um inalcançável. Nostalgia como a loucura, essa memória do novo, a "voz que não escutamos". Tarkovski traça um filme nos limites do humano, como anjos caídos a ouvir (ao longe) as palavras de um Deus nunca-presente, por entre pilastras frias e atravessadas pela presença de um Ser indefinível. O poeta russo carrega a memória de seu passado, o louco Domenico carrega o desejo de a um só tempo poder esquecer-se de tudo e relembrar-se do Todo. Nostalgia aparece como esse sentido inescapável de eternidade, de que há algo de sempre pequeno e de sempre inexprimível em cada gesto que ultrapassa as diferenças sociais, culturais, políticas, econômicas... humanas.

O mundo nos aparece como uma espécie de caverna, de masmorra cheia de belezas ímpares, mas úmida e enevoada como as piscinas de água quente. As vozes (e Tarkovski passeia com a câmera encontrando vazios e nucas), parecem vir de algum lugar-outro que não das bocas de seus personagens, de suas figuras, de seus vultos. O som pregnante de goteiras, de serras elétricas, de cantos ecoados pelos corredores do hotel/casa-de-banho onde se hospeda o professor: tudo remete ao cenário inicial do templo de Nossa Senhora do Parto, onde mulheres caminham em círculos, murmurando nas sombras. Os raccords falsos, a câmera que descobre paredes em travellings sem rumo, os personagens que surgem de baixo do quadro como que se erguendo do chão, as paredes enrugadas (e, nesse sentido, a cenografia do filme é primorosa).

Há uma fantasmagoria que percorre a narrativa, onde os corpos circulam, passeiam, em movimentos marcados, duros, como as representações inertes de figuras-imagens que estão não-mais-ali (como as estátuas de que fala Domenico). É o gesto da pesquisa, da arqueologia (a busca pelo passado) que vai desencadear, nesse labirinto, a possibilidade de alguma ruptura, de algum sentimento de recomeço intuído, mas nunca enxergado. É a partir do encontro do taciturno professor (em sua busca pelas memórias de um compositor russo obscuro) com o misterioso Domenico (funcionário da casa-de-banhos) que o filme se conjuga em direção a uma trágica e incontornável alegria. Incontornável como a promessa de atravessar a piscina levando nas mãos a pequena vela acesa...Como se todo o filme, todo o perambular da câmera parecesse nos levar, hipnotizar (em um mantra) em direção às duas seqüências finais: a da morte-suicídio de Domenico em meio à cidade de Roma (a imagem-clichê da cultura ocidental) e a do atravessar da piscina com a vela nas mãos. A articulação entre essas duas seqüências funciona como o desaguar de todos os minutos anteriores do filme.

Primeiro, o momento trágico em que Domenico põe fogo no próprio corpo (diante de uma multidão de estátuas, de mármore e de carne) e ouvimos a Ode à Alegria de Beethoven (numa trilha sonora diegética/não-diegética em que não vemos a fonte da música, embora percebamos que ela está sendo reproduzida "dentro do filme", por um aparelho precário), seguida do grito seco do homem que sente seu corpo tomado pelas chamas. Em seguida, segundo momento, vemos as mãos do professor tentando acender o pequeno pavio de um pedaço de vela. Diante de uma piscina de águas termais, agora vazia, tem início uma das cenas mais antológicas de toda a filmografia de Tarkovski: num único plano-seqüência, acompanhamos o professor levar (entre as palmas das mãos) a chama frágil da vela, indo de um lado ao outro da piscina. Apesar de todo cuidado e concentração do professor, a umidade do ambiente é muito grande e a vela insiste em se apagar. Mas o professor continua sua tentativa, reacendendo a vela, e repetindo o trajeto desde o início. A mesma força destrutiva do fogo agora aparece naquela pequena e frágil chama, tão suscetível a se apagar a qualquer momento, a qualquer movimento brusco. É a insistência, a resistência – um sentido primordial de promessa e da vontade – que fazem com que o professor perpetue sua tentativa... até conseguir.

Esse pequeno ritual, simples, aparece no filme como a imagem-limite, como o gesto de reencontro final do personagem com toda a densidade e o peso de suas lembranças (e daquilo que, em seu corpo, se torna inexprimível). A umidade do ambiente, a batalha entre o fogo e a água (que cria o vapor denso das piscinas termais e que o impede de enxergar mais adiante). Em off, o professor só consegue grunhir, como se tivesse se ultrapassado, enquanto vemos a vela já posta do outro lado da piscina. Final do percurso, do ritual, do calvário – restam as reticências de uma imagem preto-e-branco onde o professor finalmente se deita "por dentro" de seu passado, ao lado de um velho cão, e fita o céu distante agora refletido no chão, numa poça d`água. Tarkovski finda assim essa pequena obra-prima de cinema-posado e de poesia gráfica; apostando em imagens que são antes de tudo sintomas pulsantes, tensões da forma e dos sons, numa vivacidade que se não está localizada em cada um de seus personagens-estátuas, parece percorrer o filme como uma espécie de energia não-localizável, intuída, tão frágil, tão poderosa e tão passageira quanto a chama que queima (que tanto pode atravessar os corpos quanto desaparecer em um leve bufar de vento) e que alguns chamariam de "fé". Não uma "fé" resumida neste ou naquele estatuto, mas uma "fé" primordial, talvez, na própria sobrevida do cinema para além de tudo o que se possa alcançar, que se possa conter nas imagens. Nostalgia, mais do que um retorno ao passado, é esse desejo, sem-solo, de se tocar, de se contagiar (e contagiar o espectador) com um sentido indecifrável de eternidade. E esse é o grande êxito do filme, e de Tarkovski.

O poder das listas

Por Umberto Eco
 
Entrevistadores: Susanne Beyer e Lothar Gorris
 
O escritor e semioticista italiano Umberto Eco, curador de uma nova exposição no Louvre em Paris, falou à "Spiegel" sobre o lugar que as listas ocupam na história da cultura, as formas pelas quais tentamos evitar pensar na morte e por que o Google é perigoso para os jovens.

Peter Kollanyi/EFE
Mudanças "Se você interage com as coisas em sua vida, tudo muda constantemente. E se nada muda, você é um idiota", conclui Umberto Eco

Spiegel: S o senhor é considerado um dos grandes acadêmicos do mundo, e agora está inaugurando uma exibição no Louvre, um dos museus mais importantes do mundo. Entretanto, os temas de sua mostra soam um pouco lugar-comum: a natureza essencial das listas, poetas que listam coisas em seus trabalhos e pintores que acumulam coisas em suas pinturas. Por que você escolheu esses temas?
Umberto Eco:
A lista é a origem da cultura. Ela faz parte da história da arte e da literatura. O que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível. Ela também quer criar ordem - nem sempre, mas com frequência. E como, enquanto seres humanos, lidamos com a infinitude? Como é possível entender o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários. Há uma atração em enumerar com quantas mulheres Don Giovanni dormiu: foram 2.063 pelo menos, de acordo com o libretista de Mozart, Lorenzo da Ponte. Nós também temos listas totalmente práticas - listas de compras, testamentos, cardápios - que, a seu modo, também são conquistas culturais.


Spiegel: A pessoa aculturada deveria então ser vista como um zelador tentando impor a ordem em lugares onde o caos prevalece?
Eco:
A lista não destrói a cultura; ela a cria. Para onde quer que você olhe na história da cultura, encontrará listas. Na verdade, há uma variedade atordoante: listas de santos, exércitos e plantas medicinais, ou de tesouros e títulos de livros. Pense nas coleções sobre a natureza do século 16. Meus livros, a propósito, são cheios de listas.


Spiegel: Contadores fazem listas, mas também podemos encontrá-las nas obras de Homero, James Joyce e Thomas Mann.
Eco:
Sim. Mas eles, é claro, não são contadores. Em "Ulysses", James Joyce descreve como seu protagonista, Leopold Bloom, abre suas gavetas e tudo o que ele encontra dentro delas. Vejo isso como uma lista literária, e ela diz muito sobre Bloom. Ou veja Homero, por exemplo. Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Spiegel: Mas, ao fazer isso, ele não se desvia da poesia?
Eco:
A princípio, pensamos que uma lista é algo primitivo e típico das primeiras culturas, que não tinham um conceito exato do universo e que, portanto, eram limitadas a listar as características que podiam nomear. Mas, na história cultural, a lista prevaleceu ao longo do tempo. Ela não é, de forma alguma, uma mera expressão das culturas primitivas. Uma nova visão de mundo baseada na astronomia predominou durante o Renascimento e o período barroco. E havia listas. E a lista com certeza impera na era pós-moderna. Ela tem uma mágica irresistível.


Spiegel: Mas por que Homero lista todos aqueles guerreiros e seus navios, se sabe que nunca será capaz de citar todos eles?
Eco:
O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê. Os amantes estão na mesma posição. Eles experimentam uma deficiência de linguagem, uma falta de palavras para expressar seus sentimentos. Mas os amantes tentam parar de fazer isso? Eles criam listas: seus olhos são tão belos, assim como sua boca, e a sua clavícula... As pessoas podem entrar em grandes detalhes.


Spiegel: Por que nós perdemos tanto tempo tentando concluir coisas que não podem ser realisticamente concluídas?
Eco:

Nós temos um limite, um limite muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos de todas as coisas que acreditamos não ter limites, e que, portanto, não têm fim. É uma forma de fugir dos pensamentos sobre a morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer.


"As pessoas têm suas preferências"

Spiegel: Em sua mostra no Louvre, você também mostra obras das artes visuais, como naturezas-mortas. Mas essas pinturas têm molduras, ou limites, e elas não podem mostrar mais do que de fato mostram.
Eco:
Pelo contrário, o motivo pelo qual gostamos tanto delas é que acreditamos que somos capazes de ver mais do que elas mostram. Uma pessoa contemplando uma pintura sente necessidade de abrir a moldura e ver que coisas estão à esquerda e à direita da tela. Esse tipo de pintura é verdadeiramente uma lista, um recorte da infinitude.


Spiegel: Por que as listas e as acumulações são particularmente importantes para você?
Eco:
As pessoas do Louvre me procuraram e perguntaram se eu gostaria de ser o curador de uma exibição no museu, e pediram para que eu elaborasse uma programação de eventos. Só a ideia de trabalhar num museu já era sedutora para mim. Estive lá sozinho recentemente, e me senti como um personagem num livro de Dan Brown. Fiquei ao mesmo tempo assustado e maravilhado. Percebi imediatamente que a exibição teria como tema as listas. Por que me interesso tanto pelo assunto? Não sei dizer exatamente. Gosto das listas pela mesma razão que outras pessoas gostam de futebol ou pedofilia. As pessoas têm suas preferências.


Spiegel: Ainda assim, você é famoso por ser capaz de explicar suas paixões...
Eco:
? mas não por falar sobre mim mesmo. Veja, desde a época de Aristóteles tentamos definir as coisas baseadas em sua essência. A definição do homem? Um animal que age de forma deliberada. Agora, levou 80 anos para os naturalistas conseguirem elaborar a definição de um ornitorrinco. Eles acharam infinitamente difícil descrever a essência desse animal. Ele vive na água e na terra; bota ovos, e apesar disso é um mamífero. Então com que se parece essa definição? É uma lista, uma lista de características.

Spiegel: Uma definição certamente seria possível com um animal mais convencional.
Eco:
Talvez, mas isso tornaria o animal interessante? Pense num tigre, que a ciência descreve como um predador. Como uma mãe descreveria um tigre para seu filho? Talvez usando uma lista de características: o tigre é um felino, grande, amarelo, com listras e forte. Só um químico se referiria à água como H2O. Mas eu digo que ela é líquida e transparente, que nós a bebemos e que podemos nos lavar com ela. Agora você pode finalmente ver sobre o que estou falando. A lista é o marco de uma sociedade altamente avançada, desenvolvida, porque ela nos permite questionar as definições essenciais. A definição essencial é primitiva comparada à lista.

Spiegel: Pode parecer que você está dizendo que deveríamos parar de definir as coisas e que o progresso seria, em vez disso, apenas contar e listar as coisas.
Eco:
Isso pode ser libertador. O período barroco foi um período de listas. De repente, todas as definições escolásticas que foram feitas no período anterior não serviam mais. As pessoas tentaram ver o mundo de uma perspectiva diferente. Galileu descreveu novos detalhes sobre a Lua. E, na arte, definições estabelecidas foram literalmente destruídas, e a variedade de assuntos se expandiu tremendamente. Por exemplo, vejo as pinturas do barroco holandês como listas: as naturezas-mortas com todas aquelas frutas e as imagens de armários opulentos de curiosidades. As listas podem ser anárquicas.

Spiegel: Mas você disse que as listas podem estabelecer a ordem. Então, tanto a ordem quanto a anarquia se aplicam? Isso tornaria a internet, e as listas criadas pelo mecanismo de busca Google, perfeitas para você.
Eco:
Sim, no caso do Google, ambas as coisas convergem. O Google faz uma lista, mas, no minuto em que eu olho para minha lista gerada pelo Google, ela já mudou. Essas listas podem ser perigosas - não para pessoas mais velhas como eu, que adquiriram o conhecimento de outra forma, mas para os jovens, para quem o Google é uma tragédia. As escolas precisam ensinar a fina arte de discriminar.

Spiegel: Você está dizendo que os professores deveriam instruir seus alunos sobre a diferença entre o que é bom e o que é ruim? Se sim, como eles deveriam fazer isso?
Eco:
A educação deveria voltar à forma que era nas oficinas do Renascimento. Lá, os mestres não eram necessariamente capazes de explicar aos alunos porque uma pintura era boa em termos teóricos, mas eles faziam isso de forma mais prática. Veja, o seu dedo pode se parecer com isso, mas ele é de fato assim. Veja, esta é uma boa mistura de cores. A mesma abordagem deveria ser usada nas escolas ao lidar com a internet. O professor deveria dizer: "Escolha qualquer assunto, quer seja a história alemã ou a vida das formigas. Busque 25 páginas diferentes na internet e, ao compará-las, tente descobrir qual oferece uma boa informação". Se dez páginas descreverem a mesma coisa, pode ser um sinal de que a informação publicada está correta. Mas também pode ser um sinal de que alguns sites copiaram os erros dos outros.

Spiegel: Você tem uma tendência maior a trabalhar com livros, e tem uma biblioteca de 30 mil volumes. Ela provavelmente não funciona sem uma lista ou catálogo.
Eco:
Acredito que, agora, ela tenha na verdade 50 mil livros. Quando minha secretária quis catalogá-la, pedi que ela não o fizesse. Meu interesse muda constantemente, assim como minha biblioteca. A propósito, se você muda constantemente de interesses, sua biblioteca constantemente dirá algo diferente sobre você. Além disso, mesmo sem um catálogo, sou obrigado a me lembrar dos meus livros. Tenho um corredor para literatura com 70 metros de comprimento. Ando por ele várias vezes por dia, e me sinto bem ao fazer isso. A cultura não é saber quando Napoleão morreu. Cultura significa saber como posso descobrir isso em dois minutos. É claro, hoje em dia posso encontrar esse tipo de informação na internet em menos tempo. Mas, como eu disse, nunca se pode ter certeza com a internet.

Spiegel: Você inclui uma lista simpática feita pelo filósofo francês Roland Barthes em seu novo livro, "A Vertigem das Listas". Ele lista as coisas de que mais gosta e as coisas de que não gosta. Ele adora salada, canela, queijo e especiarias. Ele não gosta de motoqueiros, mulheres com calças compridas, gerânios, morangos e cravo [instrumento musical]. E você?
Eco:
Eu seria um tolo se respondesse a isso; estaria me fechando numa definição. Eu era fascinado por Stendhal aos 13 e por Thomas Mann aos 15 e, aos 16, eu adorava Chopin. Então passei a minha vida inteira tentando conhecer o resto. Agora, Chopin está no topo novamente. Se você interage com as coisas em sua vida, tudo muda constantemente. E se nada muda, você é um idiota.


Tradução: Eloise De Vylder
Entrevista ao jornal Der Spiegel, publicada no Uol Notícias/ Brasil